Um pequeno livreto que lancei há dez anos e hoje disponível na internet[1] tem estampado na sua capa uma guarita no estilo colonial espanhol, com um caracol invertido na sua base de sustentação. Este detalhe arquitetônico, talvez único no Brasil, guarnece o chamado “portão espanhol”. Uma justa homenagem ao período da união das coroas ibéricas (1580 – 1640).
Sobre este importante período da nossa história colonial cumpre destacar que Felipe II, rei da Espanha, ascendeu ao trono português em 1580, ampliando um vasto império que permaneceu unido até 1640. Esta união ibérica foi um dos motivos pelos quais as colônias portuguesas passaram a sofrer, com maior intensidade, incursões de piratas e corsários inimigos da Espanha.
Em 1583, uma esquadra espanhola com 16 navios, comandada pelo almirante Diogo Flores de Valdez – “Capitão General das Costas do Brasil”[2] – surpreendeu o corsário inglês Eduard Fenton na baía de Santos. Com o propósito de indicar aos habitantes da região que “agora os espanhóis mandavam aqui”, Valdez deixou em Santos uma centena de soldados da sua frota, com planta do arquiteto militar Giovanni Battista (Juan Bautista) Antonelli[3], para fortificar a embocadura do estuário onde se abrigava o incipiente porto da Capitania de São Vicente: “Certamente muitos desses soldados-construtores espanhóis escolhidos eram artífices e dezenas deles aqui se radicaram, como é o caso do famoso Bartolomeu Bueno, carpinteiro naval, que posteriormente foi inspetor das obras da Matriz de São Paulo e pai dos bandeirantes Jerônimo Bueno e Amador Bueno”[4]. E, assim, surgiu a Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande.
O padre espanhol José de Anchieta em seus apontamentos de 1584 - Informações do Brasil e de suas Capitanias -, também destaca esta construção militar de origem espanhola: “Na Capitania de S. Vicente dentro da ilha que é a primeira que se povoou há duas vilas de portugueses (...). Em frente tem a ilha de Guaíbe, no cabo da qual, para o norte tem uma barra com as fortalezas de Bertioga quatro a seis léguas das vilas [Santos e S. Vicente], e da parte do sul, que é a outra barra, tem o forte que agora se fez por Diogo Flores, general, com gente de guarnição, e dentro da mesma ilha estão moradores com igreja de S. Amaro”[5].
Foi também neste período de união das coroas ibéricas que as bandeiras – organização paramilitar composta por 10 esquadras com 25 homens cada – iniciaram um projeto de ocupação do oeste bravio, muito além da linha imaginária de Tordesilhas, dando ao Brasil um novo perfil militar: "Os bandeirantes estiveram sempre presentes, na ocupação e defesa do território, na demarcação das nossas fronteiras e no embrião de uma organização militar capaz de conservar intacto o imenso patrimônio territorial brasileiro”[6]. Neste período o papel militar de São Paulo nas conquistas a Oeste a ao Sul repetiu-se no Nordeste (Pernambuco) e no Norte (Pará), regiões onde atuavam piratas e corsários de várias matrizes: “A esse tempo, também, tanto ingleses, como principalmente os holandeses, em hostilidade à Espanha, ativavam suas operações no Brasil”[7]. O Forte dos Reis Magos (1594) deu origem a Natal. A cidade de Fortaleza _ e seu próprio nome _ surgiu no entorno da Fortaleza da Nossa Senhora da Conceição (1611/1649) e assim por diante ........
Por esta e outras razões geopolíticas, um verdadeiro “colar de fortificações” foi erguido no perímetro da América de origem portuguesa. E toda esta fantástica história de povoamento e conquistas territoriais começou na antiga Capitania de São Vicente e se encerrou com o Tratado de Madrid de 1750, posteriormente ratificado pelo Tratado de Santo Ildefonso de 1777.
Nota-se, por fim, que estas fortificações atraiam famílias de baixa renda para dar apoio logístico não operacional aos soldados na fronteira terrestre e no litoral. O mesmo fenômeno ocorreu com a Fortaleza de Santo Amaro, pois o incipiente porto e a vila de Santos desenvolveram-se a partir do lagamar de Enguagassu (NE da Ilha de S. Vicente, 9 km a montante da foz do estuário), protegidos por um fantástico sistema de defesa militar colonial, nas barras norte e sul de acesso ao estuário, além de uma defesa aproximada (Itapema e Montserrat).
Entende-se, portanto, que este povoamento do entorno das fortificações coloniais tem comportamento diverso daquele que chamamos de “efeito aeroporto”, por meio do qual a vizinhança que se instala posteriormente ao redor passa a criticar os efeitos negativos dos pousos e decolagem. Ou seja, no mundo todo os castelos e as fortificações que os substituíram a partir da batalha de Crécy (1346)[8] são protegidos como patrimônio histórico, inclusive pelo ICOMOS – Comitê Internacional Científico sobre Fortificações e Patrimônio Militar. Por outras palavras, a UNESCO acompanha e apoia este longo processo de substituição da função militar das fortificações coloniais por outros projetos comunitários, numa verdadeira passagem do “repelir inimigos para o receber amigos”.
... Mas, há muito tempo as fortificações coloniais perderam a aptidão para o “combate” e já não se houve o troar dos seus canhões ..... Urge agora não perdê-las na poeira do tempo.
Com este propósito – não perdê-las na poeira do tempo –, diversos segmentos da sociedade brasileira estão somando esforços no sentido de conscientizar os dirigentes das instituições públicas e privadas a darem maior atenção ao alerta do historiador britânico Arnoud J. Toynbee: “As lições da História são como uma carta náutica para o navegante, a quem cabe escolher a rota a seguir e traçá-la devidamente na carta”.
É preciso, portanto, dar prosseguimento a esta fantástica epopeia portuguesa, espanhola e bandeirante. Com este propósito, as prefeituras de Santos e de Guarujá, administradoras da Casa do Trem Bélico e da Fortaleza de Santo Amaro desenvolvem um projeto piloto histórico-cultural – Circuito dos Fortes, versão colonial – com o objetivo de resgatar a memória do antigo sistema defensivo colonial do Porto de Santos[9].
Elcio Rogerio Secomandi _ Coronel de Artilharia, reformado / Idt 02314229-08, MD/EB
Ocupa a Cadeira nº 4, Visconde de Taunay, no Instituto Histórico e Geográfico de Santos
ersecomandi@gmail.com www.secomandi.com.br (em desenvolvimento)
[1] www.unisantos.br/fortaleza - Foto: Berenice Kauffmann
[2] MORI, Victor Hugo. Arquitetura Militar. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado / Fundação Cultural Exército Brasileiro, 2003, p. 129. Obs_ A esquadra de Valdez tinha por missão patrulhar a costa leste do Novo Mundo ao sul do Equador e fortificar o Estreito de Magalhães.
[3] Antonelli, a seguir, passou a ser arquiteto-chefe das Antilhas e sua família nos deixou inúmeras fortificações, hoje declaradas Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco.
[4] MORI, Victor Hugo. Arquitetura Militar. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado / Fundação Cultural Exército Brasileiro, 2003, p. 135
[5] Ibidem, p. 135
[6] ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO. História do Exército Brasileiro: Perfil militar de um povo. Brasília: Fundação IBGE, 1972, v !, p. 32
[7] MAGALHÃES, João Baptista. A compreensão da unidade do Brasil. Rio e Janeiro: Bibliex, 2002: “O papel militar da Bahia nas lutas ao Norte contra o francês e, principalmente, o holandês, é subsidiário do de Pernambuco”. Com a fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, acentua-se a importância militar do Rio e Janeiro: “Até então, o Rio e Janeiro era apenas subsidiário da Bahia e sobrepujado por Pernambuco, São Paulo e Pará”. O papel militar das capitanias: pgs. 87 e seguintes; 125 e seguintes; e, 143 e seguintes
[8] A batalha de Crécy (sul de Calais) marcou o início mudança da neurobalística (catapultas) para pirobalística (canhões).
[9] O Circuito dos Fortes, versão colonial foi apresentado no 8º Seminário de Cidades Fortificadas, Forte Copacabana, com participação de onze (11) países da Europa e das Américas: